2.

(...) Não era por isso que não se podia considerar feliz. Tinha tudo o que ao longo destes anos pedira inconscientemente; fizera uma lista de desejos que, um por um desapareceram, uns por falta de tempo, outros que acabaram por se realizar, amadurecidos pelo passar dos anos. Ela sabia exactamente o que queria, passava a maior parte do dia a pensar em coisas quase sem importância, distraindo-se até com pensamentos vagos que de vez em quando tratavam de se ocupar da sua mente subconsciente. Ostentava quase sempre uma expressão vazia, e desde que o seu pai morrera, o brilho nos seus olhos tinha desaparecido, como o brilho de uma estrela que morreu lá ao longe. Lembrava-se desse dia como se tivesse sido ontem: recebera a notícia através de um vizinho que irrompera porta adentro esbaforido, como quem foge de um tornado ou qualquer outro desastre natural, e por entre suspiros, lágrimas e esgares de ansiedade, lá acabou por deixar sair de uma vez só as palavras ''o teu pai morreu'' que tanto lhe pesavam o coração. Nesse momento, nesse preciso e exacto momento, coração caiu-lhe aos pés, abriu os olhos e cobriu a boca com as mãos, enquanto suspirava sofregamente e sentia o sangue a pulsar-lhe nas veias, mais rápido que a velocidade da luz. Não queria acreditar. E foi assim que, desde esse momento, ainda tinha a esperança cega de que um dia o seu pai, o seu querido e amado pai havia de voltar da guerra com uma caixa de chocolates (os preferidos dela, como sempre) e um urso de peluche gigante que certamente tentaria compensar aquela sua ausência tão longa e demorada. Mas ele nunca mais vinha. (...)

1.

- E se todo este mundo não for real, e não passar apenas de uma ilusão estrategicamente montada para me fazer acreditar, peço-vos que acabe, que tudo aquilo que é assunto que puxe sorrisos se dilua na treva que assombra este mundo. Terrível era se tal ilusão tomasse conta do mundo e nos fizesse a todos acreditar que viver era o mesmo que permanecer numa só realidade. Em vez disso, toma conta de mim e de mais uns quantos ingénuos e pobres de espírito, aquela vontade surda de sonhar, sonhar sem tecto, sonhar num anoitecer recolhido, numa noite negra, num amanhecer sincero e simples. Cegaram a sociedade e venderam-lhe uma ideia, que de tão falsamente perfeita foi aceite sem reclamar. - tinha os olhos cheios de lágrimas mas não se atrevera sequer a lançar um suspiro que possivelmente desencadearia um choro profundo e agudo.
Na divisão escura onde mal se distinguiam as suas feições devido à fraca luz que ali entrava, através da janela com os estores corridos, reinava a desarrumação e um cheiro inconfundível a maresia. Ela estava sozinha e recitava um dos poucos textos que escrevera até então, com a alma de quem declama os versos da mais famosa poesia portuguesa, um orgulho nacional. Ninguém a conhecia, raramente saia à rua, e nas vezes que saia sentia-se de tal forma incomodada que tentava voltar o mais rapidamente possível a casa. No entanto, era bonita, e ninguém no mundo era capaz de dizer o contrário. Os seus cabelos dourados, compridos e lisos que lhe caiam pelos ombros, as suas faces de menina sempre na flor da idade, os seus olhos verdes que antes brilhavam intensamente e que agora eram apenas mais uma das maneiras de ver o mundo. 
Estava sozinha como sempre, mas não sentia falta de nada que pudesse ter, não sentia falta de ninguém, de nenhum sentimento mais profundo e verdadeiro.