3.

(...) e agora, pouca diferença lhe fazia. Continuava a sentir saudade, isso era certo, e havia noites em que não conseguia dormir, pois a única coisa que precisava era de alguém que lhe ajeitasse os cobertores e lhe passasse a mão pelo cabelo enquanto lhe contava uma história de embalar qualquer com final feliz. Mas nunca ninguém vinha, e até ela própria já se convencera de que não tinha mais idade para este tipo de comportamentos. Agora dormia sozinha, agora não precisava de histórias que terminassem sempre bem, agora não precisava de se sentir protegida pelas mantas que a cobriam como uma espécie de caverna. Agora crescera e não podia ter medo de nada nem ninguém, muito menos de dormir com a luz apagada, no quarto escuro ao qual já conhecia todos os cantos.
Nessas noites, onde o sono custava a chegar, escrevia convencida de que um dia alguém iria ouvir as suas histórias com atenção, ler por entre as linhas e ver a verdadeira intenção de uma história feita à toa, trabalhada à pressa, misturando tantas palavras quantas ela quisesse, baralhando tudo num remoinho tão intenso que fazia com que quem lesse não percebesse nem um décimo do que ela escrevia.
''Tens de ser mais concisa, menos confusa.''
''Não consigo.'' dizia ela, com os dentes cerrados, como se dizer-lhe aquilo fosse o maior insulto à face da Terra.

2.

(...) Não era por isso que não se podia considerar feliz. Tinha tudo o que ao longo destes anos pedira inconscientemente; fizera uma lista de desejos que, um por um desapareceram, uns por falta de tempo, outros que acabaram por se realizar, amadurecidos pelo passar dos anos. Ela sabia exactamente o que queria, passava a maior parte do dia a pensar em coisas quase sem importância, distraindo-se até com pensamentos vagos que de vez em quando tratavam de se ocupar da sua mente subconsciente. Ostentava quase sempre uma expressão vazia, e desde que o seu pai morrera, o brilho nos seus olhos tinha desaparecido, como o brilho de uma estrela que morreu lá ao longe. Lembrava-se desse dia como se tivesse sido ontem: recebera a notícia através de um vizinho que irrompera porta adentro esbaforido, como quem foge de um tornado ou qualquer outro desastre natural, e por entre suspiros, lágrimas e esgares de ansiedade, lá acabou por deixar sair de uma vez só as palavras ''o teu pai morreu'' que tanto lhe pesavam o coração. Nesse momento, nesse preciso e exacto momento, coração caiu-lhe aos pés, abriu os olhos e cobriu a boca com as mãos, enquanto suspirava sofregamente e sentia o sangue a pulsar-lhe nas veias, mais rápido que a velocidade da luz. Não queria acreditar. E foi assim que, desde esse momento, ainda tinha a esperança cega de que um dia o seu pai, o seu querido e amado pai havia de voltar da guerra com uma caixa de chocolates (os preferidos dela, como sempre) e um urso de peluche gigante que certamente tentaria compensar aquela sua ausência tão longa e demorada. Mas ele nunca mais vinha. (...)

1.

- E se todo este mundo não for real, e não passar apenas de uma ilusão estrategicamente montada para me fazer acreditar, peço-vos que acabe, que tudo aquilo que é assunto que puxe sorrisos se dilua na treva que assombra este mundo. Terrível era se tal ilusão tomasse conta do mundo e nos fizesse a todos acreditar que viver era o mesmo que permanecer numa só realidade. Em vez disso, toma conta de mim e de mais uns quantos ingénuos e pobres de espírito, aquela vontade surda de sonhar, sonhar sem tecto, sonhar num anoitecer recolhido, numa noite negra, num amanhecer sincero e simples. Cegaram a sociedade e venderam-lhe uma ideia, que de tão falsamente perfeita foi aceite sem reclamar. - tinha os olhos cheios de lágrimas mas não se atrevera sequer a lançar um suspiro que possivelmente desencadearia um choro profundo e agudo.
Na divisão escura onde mal se distinguiam as suas feições devido à fraca luz que ali entrava, através da janela com os estores corridos, reinava a desarrumação e um cheiro inconfundível a maresia. Ela estava sozinha e recitava um dos poucos textos que escrevera até então, com a alma de quem declama os versos da mais famosa poesia portuguesa, um orgulho nacional. Ninguém a conhecia, raramente saia à rua, e nas vezes que saia sentia-se de tal forma incomodada que tentava voltar o mais rapidamente possível a casa. No entanto, era bonita, e ninguém no mundo era capaz de dizer o contrário. Os seus cabelos dourados, compridos e lisos que lhe caiam pelos ombros, as suas faces de menina sempre na flor da idade, os seus olhos verdes que antes brilhavam intensamente e que agora eram apenas mais uma das maneiras de ver o mundo. 
Estava sozinha como sempre, mas não sentia falta de nada que pudesse ter, não sentia falta de ninguém, de nenhum sentimento mais profundo e verdadeiro.