1.

- E se todo este mundo não for real, e não passar apenas de uma ilusão estrategicamente montada para me fazer acreditar, peço-vos que acabe, que tudo aquilo que é assunto que puxe sorrisos se dilua na treva que assombra este mundo. Terrível era se tal ilusão tomasse conta do mundo e nos fizesse a todos acreditar que viver era o mesmo que permanecer numa só realidade. Em vez disso, toma conta de mim e de mais uns quantos ingénuos e pobres de espírito, aquela vontade surda de sonhar, sonhar sem tecto, sonhar num anoitecer recolhido, numa noite negra, num amanhecer sincero e simples. Cegaram a sociedade e venderam-lhe uma ideia, que de tão falsamente perfeita foi aceite sem reclamar. - tinha os olhos cheios de lágrimas mas não se atrevera sequer a lançar um suspiro que possivelmente desencadearia um choro profundo e agudo.
Na divisão escura onde mal se distinguiam as suas feições devido à fraca luz que ali entrava, através da janela com os estores corridos, reinava a desarrumação e um cheiro inconfundível a maresia. Ela estava sozinha e recitava um dos poucos textos que escrevera até então, com a alma de quem declama os versos da mais famosa poesia portuguesa, um orgulho nacional. Ninguém a conhecia, raramente saia à rua, e nas vezes que saia sentia-se de tal forma incomodada que tentava voltar o mais rapidamente possível a casa. No entanto, era bonita, e ninguém no mundo era capaz de dizer o contrário. Os seus cabelos dourados, compridos e lisos que lhe caiam pelos ombros, as suas faces de menina sempre na flor da idade, os seus olhos verdes que antes brilhavam intensamente e que agora eram apenas mais uma das maneiras de ver o mundo. 
Estava sozinha como sempre, mas não sentia falta de nada que pudesse ter, não sentia falta de ninguém, de nenhum sentimento mais profundo e verdadeiro.